Por Marcio Gaspar
“…Abra um parênteses, não esqueça que independente disso eu não passo de um malandro, de um moleque do Brasil. Que peço e dou esmolas, mas ando e penso sempre com mais de um. Por isso, ninguém vê minha sacola…”
Trecho de ‘Mistério do Planeta’, de Luiz Galvão e Moraes Moreira
Foi em 1972, no período mais violento da ditadura, que surgiu ‘Acabou Chorare’, disco que trazia uma ousada orgia de guitarras, pandeiros e cavaquinhos quando ainda ecoava uma discussão sobre a presença de instrumentos elétricos em gêneros nacionais como o samba e o chorinho. Músicas como ‘Brasil Pandeiro’ – que Assis Valente havia composto para Carmen Miranda em 1940 – e, principalmente, ‘Preta, Pretinha’, viraram sucessos radiofônicos quase da noite pro dia. Essa foi só a primeira surpresa: ato contínuo, o país começou a prestar mais atenção naquele estranho bando de cabeludos que vivia em comunidade hippie e exibia uma alegria de viver para muitos incompatível com aqueles tempos escuros.
Paralela ao sucesso, uma aura mística em torno dos Novos Baianos passou a ser alimentada pela circulação de boatos que ligavam os integrantes do grupo a experiências com drogas e a prática do amor livre. E para incrementar o atraente mistério, os Novos Baianos cantavam letras que, para muita gente, não faziam sentido; os militares, por exemplo, não enxergavam ali ‘linguagem subversiva ou de mensagens subliminares contra a ordem e os bons costumes’, jargões utilizados pela rígida censura para banir boa parte da produção cultural da época. Se o regime não os levava à sério, o mesmo pode se dizer da intelligentsia de então, quebrada pelo exílio em terras estrangeiras ou atarantada em meio ao desânimo local. E mesmo a crítica musical, estava mais preocupada com a recente volta de Caetano e Gil, o ‘Som Livre Exportação’ de Elis e Ivan Lins, e o incensado LP ‘Construção’, lançado no ano anterior por Chico Buarque.
Assim, ninguém também poderia imaginar que, quarenta e cinco anos depois, ‘Acabou Chorare’ estaria consolidado como um dos melhores e mais influentes discos da música brasileira em todos os tempos; e que os Novos Baianos remanescentes ainda estivessem percorrendo o país e lotando todas as cidades por onde passam, apresentando basicamente aquele mesmo repertório para entusiasmadas gerações de novos e velhos fãs.
“A gente não falava diretamente de política nas músicas, mas tinha aquele anarquismo baiano que deixava a ditadura com as calças na mão”, lembra hoje Paulinho Boca de Cantor, uma das vozes do grupo. “Não passava pela nossa cabeça pegar em armas, entrar em algum partido… mas a gente tinha coragem e entusiasmo. A nossa música foi como uma manhã de sol naquela escuridão toda; isso, a gente sabia e sentia”. De fato. Como se poderia dizer naquele começo dos anos 70 (obviamente, em voz baixa…), o ar estava tão pesado que era quase possível toca-lo. O taciturno General Médici era o presidente do país em que qualquer grupo com mais de três pessoas reunidas ao ar livre era considerado suspeito; onde o principal jornal da maior cidade estranhamente publicava receitas de bolo e trechos do ‘Lusíadas’ de Camões em sua primeira página; e na casa ao lado, o seu vizinho poderia estar te observando por trás das cortinas, enquanto havia uma boa chance do motorista de táxi (ninguém usava o termo ‘taxista’) ser um informante da polícia. A juventude urbana se dividia, a grosso modo, entre os politicamente engajados e a turma do desbunde. Essas duas tribos raramente se misturavam, mas tinham em comum uma constante paranoia: afinal, a possibilidade de ser preso por portar um baseado ou um livro de Herbert Marcuse era a mesma. E poderia acontecer a qualquer momento.
Em 1970, os Novos Baianos haviam lançado seu primeiro disco, ‘É Ferro na Boneca’. “O repertório era basicamente a trilha que a gente compôs para o filme ‘Caveira, My Friend’, do Álvaro Guimarães. Inclusive, o nome Baby Consuelo veio daí: era uma personagem do filme”, recorda Paulinho. “O disco era bastante ousado para a época e a gente achava que a qualquer hora seria preso, mas os milicos não entendiam direito o que a gente dizia”.
Aquele primeiro disco trazia um som bem pop/rock, flertava com o tropicalismo, e já apresentava a criativa e delirante poesia anárquica de Luiz Galvão, com metáforas de apologia às drogas e à transgressão. Mas claramente, faltava alguma coisa. Faltava um norte, uma luz. A luz de João Gilberto.
A história é conhecida: Galvão e o papa da bossa-nova eram amigos desde a cidade natal de ambos (Juazeiro, no interior da Bahia), se reencontraram no Rio de Janeiro e as dicas de João foram fundamentais em ‘Acabou Chorare’.
Depois de ‘É Ferro na Boneca’, Galvão, Baby, Moraes Moreira, Paulinho Boca e Pepeu Gomes, que formavam o núcleo dos Novos Baianos, trocaram São Paulo pelo Rio, mas a situação financeira era péssima. Foram acolhidos por outro João, o Araújo, então diretor da gravadora Philips e que mais tarde ficaria famoso como o ‘capo’ da Som Livre e pai de Cazuza. Além de levar os baianos para morar em sua casa, João Araújo arranjou um contrato para eles na gravadora em que trabalhava. “Chegou a sair um compacto-duplo”, conta Paulinho, “que tinha ‘Quando Você Chegar’ e ‘Dê um Rolê’, mas a gente se desentendeu com o pessoal da gravadora e o LP não deu certo”.
Ao menos, com o dinheiro do contrato com a Philips, deu pra alugar um apartamento no bairro de Botafogo. “Mais ou menos na mesma época, o João Gilberto tinha voltado do México e o Galvão resolveu ir atrás dele”, continua Paulinho. “Mas ficamos naquela coisa de todo mundo que tenta se encontrar com o João: vai e volta, marca, desmarca… até que deu certo e ele passou a frequentar nossa casa”.
Uma das histórias dessa relação entre João e os Novos Baianos acabou virando folclore: alta madrugada e João toca a campainha do apê do grupo; um deles vê de relance pelo olho mágico, um sujeito sério de terno e gravata. Apavora-se e dá o alarme: “Gente, sujou! A Polícia Federal tá aí na porta!”. Mas não foi bem assim, esclarece Paulinho: “A cena aconteceu, mas foi com uma outra pessoa, um maluco amigo nosso, o Roberto de Dona Ágata, lá de Imirim. A história foi contada com o João como personagem principal, mas não foi isso e ele não gosta dessa coisa de ser confundido com ‘cana’. Mas é verdade que o João vinha de madrugada sem avisar; a nossa grande diversão era ficar esperando ele chegar: rolava uma brincadeira telepática entre nós, pra adivinhar a que horas ele estaria na porta do prédio”.
Outra coisa que virou lenda diz respeito à influência de João Gilberto no repertório de ‘Acabou Chorare’. Sim, ele recomendou a gravação de ‘Brasil Pandeiro’ e inspirou a composição da faixa-título, mas a maior parte das músicas já estava pronta há bastante tempo: “O repertório já vinha daquele LP que não deu certo na Philips”, conta Paulinho. “A chegada do João nos fez desencaixotar bumbo, pandeiro, cavaquinho, e o repertório foi se modificando e se abrasileirando; foi sendo polido, burilado. O importante é que o João falou que a gente já trazia uma bagagem de música brasileira e que essa bagagem tinha que ser mostrada, que tínhamos que olhar pra dentro de nós mesmos. O João nos botou no caminho de casa; ensaiava vocais com a gente e nos acompanhava com aquele violão maravilhoso. O Moraes pensou até em largar o violão, ao ouvir o João tocar na frente dele”.
O apartamento ficou pequeno para o grupo que já incluía também o baixista Dadi, o baterista Jorginho Gomes, os percussionistas Bola, Baixinho e Charles Negrita, o bailarino e ‘agitador’ Gato Félix, sem falar dos agregados que sempre chegavam e frequentemente, acabavam ficando. A trupe mudou-se de mala, cuia e instrumentos para o sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá. Foi lá que um novo integrante, Paulo César Salomão, misto de técnico de som e professor Pardal, turbinou as guitarras de Pepeu com capacitores removidos do aparelho de TV da casa.
“Além disso, o Salomão também montou um estúdio no galinheiro do sítio”, conta Paulinho.
“A gente tocava todo dia e toda a vizinhança ouvia nosso ensaio. O dia a dia no sítio era assim: café da manhã reforçado, baba (gíria baiana para as ‘peladas’ de futebol), ducha natural com banho coletivo e daí música, direto. A execução foi ficando primorosa e quando fomos gravar, estávamos tinindo. Gravamos ‘Acabou Chorare’ em quatro canais no Estúdio Somil, num clima super democrático. Todo mundo no grupo tinha voz, todo mundo era igual”.
Para surpresa de muitos, inclusive dos próprios Novos Baianos, ‘Acabou Chorare’ foi um estrondoso sucesso: por quase um ano permaneceu entre os primeiros colocados nas paradas, alcançando incríveis 150 mil cópias vendidas. Curioso ressaltar que a faixa de maior sucesso do disco, ‘Preta Pretinha’, quase uma moda de viola interiorana que conta uma singela história de amor na ponte Rio-Niterói, pouco ou nada tem a ver em termos de som e de temática, com o restante do LP ou com o que os Novos Baianos fariam depois. Mais um mistério.
Mas, fato raro, quase todas as faixas de ‘Acabou Chorare’ tocaram bastante nas rádios da época. Da delicada canção-título às explosões de alegria de ‘Tinindo Trincando’ e ‘A Menina Dança’, da desavergonhada brasilidade resgatada em ‘Brasil Pandeiro’ ao irresistível samba ‘Besta é Tu’. Como escreveu a jornalista Ana Maria Bahiana, ‘Acabou Chorare’ fez mais pela saúde da música brasileira e do astral do país do que qualquer remédio político’.
“A gente não tinha ideia de que ‘Acabou Chorare’ ia ser essa coisa perene e nem mesmo imaginávamos que seria o sucesso que foi”, conta Paulinho. “Esse sucesso rendeu dinheiro, mas não rolavam muitos shows, tinha muita gente morando no sítio e éramos mesmo esculhambados nesse sentido. Tinha um saco atrás da porta da cozinha onde botávamos todo o dinheiro e nego pegava o que queria, quando precisasse. Teve lance de comprar camisa e chuteira de futebol pra todo mundo, ao mesmo tempo em que não sobrava grana pra comer”.
Se o dinheiro desapareceu rápido, o tempo fez com que o reconhecimento da excelência de ‘Acabou Chorare’ só crescesse, chegando mesmo a ser eleito ‘o melhor da música brasileira em todos os tempos’, em votação realizada pela revista Rolling Stone no ano de 2007. Listas e eleições são sempre polêmicas e essa não foge à regra, mas talvez o prêmio se justifique pelas várias barreiras quebradas pelo disco dos Novos Baianos, como a proposta inusitada da alegria em oposição à carranca dos militares e a definitiva derrubada da fronteira entre instrumentos acústicos e elétricos na música brasileira, provando que o samba, o baião e o chorinho também podem ter gosto e atitude de rock. E tem ainda a incrível influência de ‘Acabou Chorare’, renovada década após década, de Marisa Monte a Tulipa Ruiz, da Orquestra Imperial a Céu.
Enquanto continuam fazendo shows pelo país, os Novos Baianos planejam a gravação de um novo disco, com músicas inéditas. “O clima tá tão legal entre nós que, outro dia, a Baby falou que a gente devia voltar a morar juntos”, diverte-se Paulinho.
Quase cinquenta anos depois, o maior mistério dos Novos Baianos talvez seja o fato de que, para eles, o sonho não acabou. Ainda bem.
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